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Foto do escritorBruna Alcântara

"A GENTE PRODUZ O QUE A GENTE COME"

Atualizado: 29 de mar. de 2021

Nascida e crescida em Brasília, a artista visual Juliana Lama começou a utilizar a técnica da Lambe Lambe como forma de manifesto.




Ligada ao Movimento Passe Livre, foram os cartazes pedindo tarifa zero e direito à cidade, que fizeram com que ela se encantasse com a possibilidade de espalhar sua mensagem utilizando cola e papel.


Hoje, com 32 anos e madura com a decisão, Juliana nos conta sobre sua evolução na arte de rua, pensamento decolonial, ancestralidade e como a Covid, contraída duas vezes pela artista, mudou seu modo de ver o mundo. Senhoras e senhoras, com vocês, a #minaquelambe deste mês - o vermelho de Juliana Lama!


Como a arte entrou na sua vida? Sempre fez parte de você ou demorou pra se descobrir e se aceitar como artista visual?

Vixi, a aceitação demorou, me reconhecer demorou... Acho que principalmente por todos os medos de subsistência nesse país com pouco investimento e valorização do trabalho de artistas. Eu desenho desde pequena (muitas crianças né?), sempre gostei, mas passei vários períodos da vida afastada disso. Teve uma hora que tomou conta e os caminhos foram devagar pra esse lugar dos trabalhos com arte, tive apoios e possibilidades, tem tanta artista nesse mundo que não tem a oportunidade.


Por que o lambe lambe? Como começou a fazer e como foi a evolução do processo com esta linguagem?

Comecei a frequentar o Movimento Passe Livre, que é um movimento social autônomo que me ensinou muito. Foi com essa galera que colei os primeiros lambes, com artes sobre a tarifa zero, sobre direito à cidade, com informações sobre próximos atos nas ruas... Concomitante, comecei a fazer artes para cartazes, me aproximei de métodos anarquistas, até meu trabalho final da graduação - que é em Design Gráfico - pendeu pros cartazes. Depois disso veio o 'Enquanto Houver Muros', que foi uma série de lambes com colagens, desenhos e pequenos textos (microcontos ou versos) que contam histórias de mulheres. Foi quando me espalhei mais nas ruas.


O que há de diferente em fazer arte na rua? As trocas com quem passa por ali fazem toda diferença! A convivência com o acaso, o não programado, a interação com outrxs artistas e com o trabalho delxs, fazer arte sem me preocupar com o sistema de galerias e com a competição por elas para ser vista, acho que a rua é mais colaborativa. O sistema da arte funciona dentro da estrutura racista, machista, homofóbica, autoritária... Poder falar e ouvir a qualquer momento do trajeto cotidiano, poder dizer as coisas sem o crivo de um especialista sobre ser arte ou não, tantas coisas... Gosto muito também de saber que será efêmera, que será uma mensagem que ficará ali por um tempo, até que aconteça algo e a própria interação com ela diz coisas. O fato dela ser rejeitada ou atropelada ou ficar ali por bastante tempo, potencializa a mensagem, o sentimento. Não são monumentos intocáveis! Eu gosto disso.



Foto: Cled Pereira

Assim como todo lugar, a rua é machista com as artistas mulheres. Concorda?

Sim. A rua é machista, mas não consigo dizer que seja mais do que certos lares ou instituições, muito menos que o Estado. Na rua eu tenho autonomia de mostrar o meu trampo, a rua me permite trabalhar.



Reprodução Instagram

Seu trabalho mostra uma potência ancestral nas imagens. Por que esta vontade de representar a ancestralidade e como isto está presente no seu dia a dia?

É bonito saber que você vê assim... Dá até vontade de saber por quê vê assim. Bom, acredito que é um dos caminhos possíveis para que a gente se conecte com outros conhecimentos que não são paradigmas coloniais, para destrinchar um bocado de mentiras que nos contam cotidianamente. Tenho a sorte de encontrar força em histórias familiares e a busca nunca foi pela verdade, mas pela possibilidade de ser múltipla, de ser bonito para outros olhos, de ser força pros olhos de quem vê nessa brecha, nessa falha da estrutura colonial que mora na nossa potência criativa. A capoeira também me ensina muito e esse elo com minha mestra Elma é uma tecnologia antiga muito sofisticada. Cotidianamente passado atualizado no presente, pois somos agentes e fazemos escolhas que transformam.


Vermelho é a sua cor, né? (a minha também <3), mas por quê?

Aah aí vou querer saber por que é a sua também! hehe. Eu gosto desde menina, morangos, caquis me fascinavam e as unhas de vovó, acabava escolhendo sem pensar sempre o vermelho. Essa cor vai se confirmando com o tempo em muitas histórias. É a cor do guaraná, do urucum, da terra de muito lugar, da guerra, de mulheres malditas na perspectiva ocidental e em si, parece que tem uma força inegável que também é aconchegante de alguma maneira.



De que forma você inclui o feminismo no seu trabalho?

Penso em criar existências possíveis, de gentes diversas possíveis, de ser mulher também e me valorizar inclusive onde nos ensinam que não é precioso, são muitas as armadilhas. O pensamento decolonial me influencia muito no trabalho. Arte não é um negócio comportado, citando Mateus Aleluia, e a gente produz o que a gente come, não é um acontecimento que fica estancado no nível do racional pra mim, mora um mistério aí que leva ao encantamento. É uma coisa viva. Pra juntar no coro dessa resposta:


"Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas" - Audre Lorde

Como tem sido fazer arte no Brasil de 2021, com uma polarização política absurda acontecendo e em meio a uma pandemia?

Tempos muito difíceis. É pesado demais digerir a dor do que acontece agora. Eu tenho a sorte de estar trabalhando em um projeto que aprovamos em um edital antes da pandemia. Segura a onda tanto financeiramente, quanto de ser propositiva nesse momento em que tantas coisas se arruinam juntas. Mas passei bastante tempo sem conseguir trabalhar. Eu tive Covid duas vezes, na primeira fiquei muito tempo de cama com falta de ar e tratando sintomas. O cansaço extremo só me abandonou meses depois. Tive outra vez mais amena, no fim do ano. Tive outros problemas de saúde e junto com o estado coletivo da gente, foi muito difícil ter ânimo. Acho que foi vencer a sensação de morte que me deu uma força: estudei técnicas novas, me dediquei à pintura e às cores que conhecia muito pouco. Mais quieta e em casa, com o plano de hora dessas sair pra pintar na rua ou colar uns lambes das artes que pintei. Mas tá muito difícil. Perdi alguns parentes para essa doença e mesmo que não tivesse acontecido comigo, a solidariedade não reconhece fronteiras, nem a experiência pessoal. Dói demais não estar perto nessas horas que realmente não podemos estar perto. Vou variando entre a raiva do desgoverno vil desse país, da estrutura que novamente massacra ao invés de criar bases e a tristeza de ver tanta potência perdida. É imenso esse luto coletivo e se me pedisse uma entrevista há um mês atrás, eu não conseguiria responder, porque o silêncio parecia a única possibilidade pra mim. Mas a gente também tem que compartilhar força quando é tomada por ela, né? Assim como chegou a mim de diversos lados nesse período, arte salva, as nossas redes de apoio também. Se alguma coisa do que faço for nesse sentido, chegar aos olhos de quem tá precisando, eu me alegro nesses tempos absurdos e desejo a mesma coisa para camaradas artistas - a possibilidade de criar, que haja mais maneiras de conseguir subsistir, mais editais, prêmios (estrutura!! pois várias das que a gente criou pelo encontro estão desestabilizadas) e que sejam melhores distribuídas.



Você sente que o mercado da arte está restrito aos eixos Rio/São Paulo e isto interfere de alguma maneira na sua vida como artista?

Sim, acaba que a gente conhece mais gente desse eixo... Parece que são os lugares que não é preciso visitar pra conhecer a produção, como acontece em tantos outros. De alguma maneira ela já se espalha e isso é bom, num é ruim não. Tem muita gente produzindo contra a hegemonia nesses lugares, mas melhor ainda, seria se outros lugares também tivessem essa possibilidade de se espalhar autenticamente, sem precisar virar produto no mercado exotizado pra isso.



 

O Lambes Brasil é um canal independente. Feito por e para artistas com o propósito de fomentar e valorizar o lambe-lambe no contexto da Arte Urbana Brasileira, fortalecer o cenário aos artistas e produtores, gerar reconhecimento da técnica e prática artística perante o público, o mercado, os órgãos governamentais, empresas, entidades culturais e demais linguagens artísticas.

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